Anuário 2007 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Polícias e políticas de segurança pública são objetos crescentes de debates no Brasil e, pelo menos em alguns segmentos da sociedade, como o acadêmico, já parecem superar a falsa dicotomia entre defensores de política de segurança pública e polícia “reativas”, mais “tradicionais”, que visam o controle e a repressão do crime e da violência, e aqueles que defendem uma política de segurança publica e uma polícia “pró-ativas”, mais “comunitárias”, que objetivam a prevenção e a redução do crime e da violência.

Entretanto, apesar dos avanços produzidos nos últimos anos, ainda são poucas as polícias e as políticas de segurança pública efetivamente avaliadas no Brasil. A maioria dos estudos está concentrada no eixo São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais¸ não obstante já existir estudos importantes em outras regiões, e focaliza ou a polícia ou a política de segurança publica isoladamente, e não a relação entre ambas. Esse fenômeno decorre de uma série de fatores, muitas vezes contraditórios entre si, entre os quais e importante mencionar:

1) a carência ou a dificuldade de acesso a dados e informações, na maioria dos Estados do país;
2) a idéia, ainda bastante disseminada, de que a polícia é quem faz e é responsável por segurança pública e que, portanto, a política de segurança pública nada mais e do que a política de emprego da polícia para redução do crime, da violência e da insegurança;
3) a idéia, também bastante disseminada, de que os problemas do crime, da violência e da insegurança são decorrentes, principalmente, de condições e fatores de natureza econômica, social e cultural, e que polícias e políticas de segurança publica têm uma influência pequena ou, na melhor das hipóteses, moderada no grau de criminalidade e violência na sociedade e de insegurança da população;
4) um distanciamento, quando não desconfiança e conflito, entre profissionais de polícia e estudiosos de polícia e segurança publica;
5) uma certa confusão entre política criminal e política de segurança pública. Uma vez que o desenho de políticas criminais é, legalmente, uma atribuição das instituições de justiça criminal no Brasil, as tensões derivadas desse processo tendem a reforçar o debate sobre papéis e missões das polícias, do Ministério Público, do Poder Judiciário e do Sistema Carcerário, deixando de lado um debate sobre a efetividade de tal sistema em distribuir justiça e garantir segurança, essa, sim, foco da política de segurança pública.

Desse modo, o desconhecimento das relações entre polícias e políticas de segurança pública compromete nossa capacidade de entender, inovar e aperfeiçoar as práticas das instituições de segurança pública no país. Há, neste sentido, certa tendência à generalização a partir de um número relativamente pequeno de experiências e, mesmo, de informações, pelo qual se acaba por tratar igualmente realidades de Estados e regiões muito diferentes.

Além disso, este desconhecimento também tem comprometido a nossa capacidade de entender a maneira pela qual as polícias e as políticas de segurança pública são relacionadas, construídas e reconstruídas, assim como de distinguir as conseqüências ou impactos de ações e práticas policiais. De acordo com a perspectiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o modo de intervir positivamente para transformar esse quadro é deslocar o foco de atenção, exatamente, para a relação entre polícias e políticas de segurança e, com isso, verificar a legitimidade, eficácia e eficiência das ações públicas na área que podem, por sua vez, combinar de diversas maneiras estratégias repressivas e preventivas, assim como as condições e os fatores que contribuem para aumentar ou diminuir a capacidade destas instituições e políticas de garantir o Estado de Direto e os direitos humanos e dar respostas efetivas às expectativas da sociedade.

A existência no Brasil de uma estrutura federativa que distribui e, ao mesmo tempo, restringe, em diferentes níveis de governo e poder, as atribuições de justiça e segurança pública, também condiciona as estratégias de planejamento e avaliação dos programas e ações propostos, à medida que estabelece padrões e modelos de atuação. Em outras palavras, as recentes reformas (propostas ou implementadas) na legislação existente são condições institucionais para um planejamento público em novos moldes: proposição de ações públicas para o médio prazo; promoção de ações governamentais integradas; articulação entre esferas de governo e com a sociedade civil organizada e o setor privado; redução de gastos públicos superpostos; etc. Essas condições também favorecem o entendimento da avaliação como parte constitutiva do processo das políticas públicas. A avaliação e/ou monitoramento de políticas e programas públicos, por sua vez, requerem definições específicas sobre os objetivos da avaliação e os critérios de aferição de seu sucesso, estabelecidos para cada política,
programa ou conjunto de programas concretamente referenciados, bem como identificam responsabilidades profissionais, causas e impactos de ações. Por fim, podem ajudar a motivar profissionais de polícia, lideranças políticas e sociedade civil a trabalharem de forma integrada e investirem mais recursos na inovação e aperfeiçoamento das polícias e das políticas de segurança pública. Todavia, não existe no Brasil um canal de disseminação ou uma publicação que consiga, em maior ou menor grau, dar um retrato nacional do tema e, ao mesmo tempo, oferecer análises sobre assuntos específicos associados à questão das políticas de segurança e às polícias.

E é nessa brecha que o Fórum idealizou o seu Anuário e pretende que ele seja, exatamente, uma publicação de referência que, mais do que exaurir todas as possibilidades e dados disponíveis, articule alguns deles de modo a transformá-los em informações qualificadas e, com isso, identifique lacunas, virtudes e potencialidades do material existente e, sobretudo, consolide a incorporação de requisitos democráticos de transparência e monitoramento de políticas públicas como uma atividade permanente das instituições estatais da área e, também, de entidades não-governamentais que, porventura, demonstrem interesse e condições de colaborar.
Isso ganha ainda mais destaque na medida em que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública consolida-se como espaço de articulação de vários atores interessados no desenho das atividades de polícia e na execução das políticas de segurança. O Fórum congrega, pioneiramente, visões e engajamentos múltiplos, aproximando policiais, técnicos, dirigentes públicos, sociedade civil organizada e comunidade acadêmica em torno da grande questão sobre como aumentar democraticamente a eficiência e a eficácia das atividades de polícia.

Em termos dos resultados alcançados, confirmou-se, infelizmente, a enorme dificuldade de se dispor de informações qualificadas sobre crimes, criminosos e instituições de justiça criminal (polícias, ministério público, judiciário, sistema carcerário, etc.). Porém, ao contrário do que se imagina, essa dificuldade não é derivada da ausência de registros ou dados, mas da impossibilidade de torná-los passíveis de análise e monitoramento comparado. Os dados existentes não respondem, em sua maioria, às dinâmicas democráticas de accountability e publicidade, existindo esferas mais transparentes do que outras. Dados sobre crimes existem em quase todos os Estados brasileiros, mas não são completamente compatíveis entre si, exigindo traduções e equivalências para serem comparados e, no limite, referindo-se à parcela da criminalidade que é tipificada pela legislação como afeita ao rito comum, em termos do seu tratamento penal. Crimes federais (lavagem de dinheiro, por exemplo) e/ou crimes contra segmentos específicos da população (mulheres, negros, idosos, etc.) ainda carecem de tradição ou, mesmo, da produção de registros fidedignos.

Assim, uma das principais tarefas da agenda de segurança pública no Brasil é o fomento à transformação de registros esparsos, fragmentados e desarticulados entre os vários atores da área em informações passíveis de serem aproveitadas no desenho e implementação de ações democráticas e cidadãs no campo das políticas de segurança. Para tanto, protocolos, padrões e classificações compatíveis precisam ser construídos e/ou consolidados – o Ministério da Justiça, por exemplo, já está perseguindo este objetivo. Algumas secretarias de segurança estaduais também investem na melhoria das suas informações estatísticas e gerenciais. Em outras palavras, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública pensa o seu Anuário como espaço de disseminação de conhecimento e análises, sem, no entanto, duplicar esforços e recursos na produção de dados. O principal objetivo aqui perseguido foi fornecer subsídios técnicos ao debate público sobre polícias e políticas de segurança pública e, ao mesmo tempo, criar condições para que o monitoramento e a avaliação sejam incorporados ao ciclo das políticas públicas da área.

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